Maria, 89 anos, natural de Penedones, de onde nunca saiu. Não conhecia nada mais do que aquela aldeia e a Barragem de Pisões.
Era a décima e última filha do tio Manuel Fonseca e da ti Maria das Ovelhas. Maria foi bafejada pela sorte, era linda, uns olhos profundos, uma pele branca, cabelos negros, ondulados, 1,70 m, um corpo ondulante e um coração de ouro.
Maria teve vários pretendentes, até o sobrinho do prior lhe fez a corte mas, Maria não queria partir, não queria sair daquele paraíso que a tinha visto nascer. Não conseguiria viver sem olhar para aquela paisagem inóspita, de uma beleza agreste. Ela pertencia ali e ali iria morrer.
Viu partir todas as suas amigas de infância, os seus irmãos e irmãs e ela ficou. Ficou a tratar das terras, dos animais e dos seus progenitores.
Vivia numa casa de pedra, que já pertencia há séculos à família. No rés-do-chão era a adega e a corte dos animais. Havia uma escada exterior, em pedra, que desembocava na cozinha, uma varanda que corria toda a fachada e que dava acesso aos quartos, quatro, agora vazios. Apenas ela continuava a habitar aquele casarão, ela e o Estrela, um Serra da Estrela, que a irmã, Maria das Dores, lhe tinha trazido dos lados de Gouveia para lhe fazer companhia.
Maria passava os serões sentada no escano, à lareira, aquecida pelos cepos de carvalho ou torgo de urzeira, com o Estrela a seus pés. Era, nesses momentos, que as saudades do passado lhe batiam à porta. Devagarinho levantava-se e dava-lhes passagem. Lá vinha o Joaquim, o seu Joaquim, com quem tinha casado aos trinta anos, após a partida de seus pais. O filho da tia Laura, viúva, que apareceu ali depois de não ter dado nada para as letras.
O Joaquim que a amou, lhe ensinou a escrever e a ler, lhe deu dois filhos, também emigrados, a Laura e o Manuel, cujos nomes herdaram dos avós, como era hábito da terra. O Joaquim tinha vivido em Lisboa, para onde tinha ido tirar o curso de engenharia mas, a álgebra e a geometria, tinham-no vencido. Voltou. Voltou para realizar o seu sonho, viver no campo.
Conheceu a Maria, vizinha da sua Mãe, uma moçoila linda, traços finos, uns olhos negros, límpidos, um passo firme. Depois de seis meses, casaram. Foram felizes mas, ele já tinha partido, há nove anos.
Encontrou-o caído na vinha. Um ataque cardíaco. Morte santa.
Há vinte anos que viviam sozinhos, a Laura e o Manuel tinham ido para França com a madrinha, fazerem-se à vida, ali não havia futuro. No natal e no verão gastavam os dias de férias com os pais, a mimá-los, a ajudá-los na lida da terra. Teve sorte com os rebentos, nunca esqueceram as origens.
Ela ali passava as noites, acompanhada pelas recordações.
O seu Joaquim era o seu anjo da guarda, o que lhe dava ânimo para continuar a enfrentar o amanhecer de sorriso nos lábios.
Levantava-se, vestia-se, penteava-se, dava de comer ao Estrela, aos animais da corte e partia, de sacho às costas, para as terras. Não podia faltar nada aos seus meninos quando chegassem do estrangeiro. As batatas, o vinho, os enchidos, Maria tratava de tudo como se eles ali estivessem. Quiseram leva-la, já tinham por lá formado família mas, Maria, faleceria se a tirassem dali. Não, ela nunca partiria. A alegria dela dependia dos animais, das árvores, dos arbustos, daquele ar puro, daqueles vales. Ficaria, nem que fosse a única habitante de Penedones.
A aldeia estava quase deserta. Os velhos tinham morrido e os novos partido. Ela e a tia Joaquina das Couves eram as únicas que resistiram à morte e à civilização. A tia Joaquina tinha 92 anos, não tardaria a partir para o pé do senhor, andava muito cabisbaixa, com uma tosse muito produtiva que lhe arrancava as entranhas.
A solidão caminhava a passos largos mas, Maria não apunhalaria a sua paixão, enquanto tivesse tino. Sempre tinha o Estrela, que lhe lambia a mãos como gritando-lhe a sua presença, fiel ao seu trabalho e a si e o telefone. Tocava todos os dias às 20.00 horas. Eram os filhos a querem saber noticias dela. Coitadinhos, temiam que lhe acontecesse alguma coisa. Ela bem os descansava, estava bem, não queria que eles gastassem dinheiro, todos os dias a telefonarem mas, eles, não a ouviam.
Assim viveu Maria, feliz, nas terras de Barroso até aos 98 anos, com aquele olhar puro, de quem não sabe o que é a civilização, pensando no seu Joaquim, a paixão da sua vida e nos seus rebentos, em companhia do Estrela.
A 20 de Agosto de 2004, Laura acorda, às três da manhã, com o Estrela a latir, aflito à porta do quarto. Levanta-se, corre em direcção ao quarto de sua Mãe, onde já está o Estrela, olhando tristemente para Maria, com os olhos rasos de água.
Maria estava morta. Morta com um sorriso rasgado nos lábios.
Tinha acabado a paixão de uma vida. Uma vida vivida felizmente, entre a pureza, a simplicidade e a naturalidade. Para Fábrica de Letras.Tema do mês: Velhice
Foto tirada do site Olhares de Luís Geres
Brown Eyes
Comentários
Um abraço!
Beijinhos
Muito bonito e sóbrio.
Quanto à Maria, como a compreendo. Se bem que a solidão assuste, ainda assusta mais afastarmo-nos das nossas raízes, pelo menos para alguns.
E quantos há que nenhuma afinidade sentem pela vida do campo... mal sabem eles o quanto perdem.
bjs*
As palavras levaram-me a viajar pela vida de Maria, vida cheia, feliz, de realização do seu sonho belo e simples.
Gostei muito, Brown!
BJS
Um beijo
GRANDE SENHORA DO CAMPO...E DAS ÁRVORES E DOS VALES E DAS MONTANHAS E DO TRABALHO ÁRDUO DA TERRA...E COM UM SORRISO A ILUMINAR-LHE A ALMA...
UM QUADRO POÉTICO E VIVO.
BEIJINHOS
e será que por viver em comunhão com a Natureza não terá tido uma vida muito mais preenchida do que quem vive nas selvas de betão?
Cumps,
Beijinho grande amiga
Beijinhos
Os nomes...Nas aldeias as pessoas ganham os alcunhas como nomes, daí, sempre que falo de gente simples, atribuir-lhes nomes que lá se utilizam. Como há por lá muitas Marias acrescentam-se alcunhas para serem mais facilmente identificados. Naquele caso acabou por ficar só a Maria. Este conto tenta chamar a atenção para o que se passa nas nossas aldeias, estão a ficar desertificadas e é pena porque, ali vivesse uma vida feliz que parece que deixou de cativar. johnny quanto ao não te cativar a vida simples, acredito e aceito, nem todos temos o mesmo ponto de vista. Mas eu que vivo as duas vidas, por imposição do dever, se pudesse deixaria tudo para viver essa vida simples onde o natural é liberdade. Onde se pode ainda ser livre? No campo. Aí só te podem vigiar de satélite ou avioneta. Na cidade estás a ser vigiado e a deixar pegadas constantemente. Até conseguem descobrir o que tu consomes. Verdade? rsss Eu como sou fanática pela liberdade, pela beleza e pela simplicidade adoro o campo e as pessoas que lá vivem.
Beijinhos
Beijinhos
Bjocas
Patty
Gostei do texto, gostei do novo look e gosto de passar por aqui! :)
Bjinhos
Muito bonito.
Belo texto para retratar uma bela vida, uma vida cheia. Nem sempre a velhice tem de ser triste.
Bjs
Esse Portugal tão típico...
Acho que não é preciso dizer mais nada...
Beijinho.
Uma história de vida, como, infelizmente, tantas outras. Gente que no seu anonimato deu razão e simplicidade à vida que tantos ignoram. Parabéns pelo post.
*beijinho
Cheguei ao fim do texto com um nó na garganta e os olhos humedecidos, talvez pela inveja da velha Maria, que morreu com um sorriso nos lábios.
Helga
Em segundo lugar: esta minha ausência deveu-se mesmo atrabalho, trabalho, trabalho (esse bicho do mato)!
Em terceiro lugar: a Maria!! É linda esta Maria que aqui conheci. É simples, viva e real! Acho que existe uma Maria dessas dentro de mim... Adoro o campo... seja no Alentejo, seja no Norte,,, seja lá onde for.
Quando vivemos em concordância com a Natureza a logevidade reside dentro de nós... Não imortam os vincos deixados pelo tempo e pelo trabalho, não importa a partida sem volta de outros... Importa sim a qualidade da vivência. A qualidade da nossa passagem. O amor que dediicamos a tudo o que fazemos e a longa e serena espera por aqueles que amamos... e que no final... sempre vêm.
Fantástico este teu texto!
Ps - a filha da Maria tem um nome fantástico!!! :D
Este texto tocou-me bastante...
**
Bastante real esta história... lembra aquelas pequenas aldeias envelhecidas e quase esquecidas do interior do nosso Portugal.
Eu, por muito que goste de sossego e da natureza, era incapaz de viver como a tua Maria.
Um beijinho
Beijinho grande e obrigada
Estava a ler-te enquanto o Julio tocava Miradouro.
Abrandei o ritmo e pus a musica em loop.
...
E depois de ler-te...dizer mais do que isto seria regressar atrás uns minutos...e não me apetece. Quero saborear esta história aqui tão perto. E mais uma vez.
Abraço
Miguel
E DEPOIS NÃO PODEMOS DISCORDAR SEMPRE,NEM CONCORDAR SEMPRE...
COM CARINHO
BEIJINHOS
Beijinho
E já agora nós não a queremos chochinha pois não miss Nakedstones?
Abraço
Miguel
ahahahaahah Nem eu me quero sentir chochinha mas.... acontece. O teu Embloglio é um espaço de frente para o mar que agrada visitar. Beijinhos e obrigada pela boa disposição que aqui deixaste.
Adorei o texto, cada palavra, cada sentimento que descreves!
Muito bonito mesmo!
Beijinho
Sobretudo com o realismo de uma história comum, que desperta todas as emoções...
Sublinho o belo estilo da escrita, que,aliás, já conheço!
Beijos...
AL
Bjinhos***
Beijinhos
És fantástica!
Beijinho grande**
Beijos
De resto, as tuas descrições são bastante boas, o leitor consegue mesmo imaginar os cenários e as pessoas como os descreves, e para quem não conhece, fica decerto com vontade de visitar (neste caso, recomendo vivamente.) ;)
Beijo
a ponte de Misarela, tem uma lenda...
Gostei do texto.
Saudações
A da construção da ponte que dizem ter sido o diabo, primeiro para passar um fugitivo, que ao chegar ali deu a alma ao diabo para que o pusesse na outra margem mas, após a passagem deste o diabo destruiu a ponte. Este ao morrer confessou isto a um padre. O padre ludibriou o diabo e quando ia a meio da ponte deita-lhe água benta, faz o sinal da cruz e pronuncia a oração do exorcismo. O diabo rebentou e lá ficou a ponte. Lendas que nos fascinam. Beijinhos e obrigada
LER-TE!!!
BEIJINHOS E BOA SEMANA
E estou à espera de mais um texto fantástico que tu sabes escrever e que nos ajuda a crescer e a aprender mais um bocadinho.
Bjocas
Patty
De uma pureza poética que muito admiro.
Deixo aqui meus parabéns
=)
Beijo
Preguiça? Trabalho? Falta de inspiração? Ou isto tudo e muito mais?
Beijinho**
Beijinhos*