Patrícia não tinha tido uma infância, uma adolescência, uma vida feliz. Tinha-se dedicado durante a sua existência aos outros. Durante anos esquecera-se que existia, para mimar os outros.
Mas um dia, um dia pesou a sua vida e, do seu lado, o prato batia no chão. Ela, que tanto tinha dado, nada recebera.
Já tinha passado dos trinta, não queria ver chegar os quarenta sem puder viver, sem ter tempo para si, sem ter feito algo por si.
Família? Que família? Onde ela estava? Família é aquela que está ao nosso lado, pronta para fazer algo por nós sem de nós nada esperar.
Filhos? Até os filhos a tinham traído. Só queriam dinheiro e mais dinheiro sem se importarem se ela estava bem ou não, se tinha dor de estômago, cabeça ou costas. Queriam era vê-la trabalhar e trabalhar.
Estava cheia. Cheia de ser usada. Usada e, ainda por cima, ser a má da fita.
Afinal Patrícia sempre fora tão livre, porque se deixaria prender por eles? Não. Não queria morrer sem viver.
Estavam aí os quarenta, estava na hora. Na hora de virar tudo. Virou. Chegou o dia em que disse:
-Gente a partir de hoje não estou. Berrem, esperneiem mas vou viver. Não adianta chantagearem-me. A Patrícia acabou de morrer.
Nunca mais ninguém a viu. Partiu. Partiu, cheia de mágoa mas, repleta de vontade de ser feliz.
Não se esqueceu da capa. A partir de agora usaria capa. Nunca mais se deixaria vencer pelo sentimento.
Iria viver só, só para ela e viveu, durante anos. Um dia conheceu alguém que a tocou. Alguém que a fez acreditar na vida e Patrícia que, sempre, viveu para amar amou. Mais uma vez amou, entregando-se de corpo e alma. Sem mentiras nem artifícios.
Esse amor durou anos. Patrícia não queria acreditar que era feliz, que alguém lhe dedicava o seu amor sem pedir nada em troca, valorizando-a.
Se ela acreditava? Se ela se imaginava a envelhecer ao lado dele? Não. Depois de tudo que passou não acreditava em nada. Tinha medo de se desiludir. Vivia o presente sabendo que o futuro seria consigo, talvez não tivesse mais ninguém.
Ele muitas vezes lhe dizia:
-Ofendes-me pensando assim.
Mas ela respondia:
Se até os meus próprios pais, que tinham obrigação, nunca me deram nada e exigiram-me tudo, que posso eu esperar de alguém? Que posso eu esperar da vida? Quando dizia isto lembrava-se do Natal, dos mendigos, que passavam sozinhos debaixo de uma ponte qualquer.
Porque será que ela imaginava assim o seu futuro? Ela tinha casa, emprego, dela, nada de oferta, eram dela e davam-lhe o sustento para o dia a dia. Mas, ela sabia que acabaria na rua. Só não sabia porquê.
Uma noite o telemóvel toca e ela ouve-o dizer:
- Sim, chegaste bem? Tenho o outro telemóvel desligado porque não tem, bateria. Está a carregar(não estava a carregar). Tiveste um acidente? Bateste com o carro (bateu mas infelizmente ainda estava viva). Estou a falar assim porque não ouço o que dizes. Estou em casa sim, porquê? Tchau.
Silêncio
Patricia: -Quem era?
Ele: - Um amigo.
Patrícia: Um amigo? Como se chama?
Ele: - Não conheces.
Patrícia: Não? Engraçado esse amigo tem voz de mulher, não? Que amigo é esse que te pede tanta justificação?
Ele: É uma colega, pedi-lhe para me fazer um trabalho e ela disse-me que já o tem feito.
Patrícia: Amigo, colega, trabalho….Que colega é essa que te pede justificações? Não daria permissão a nenhum colega que me ligasse fora de horas e muito menos que me pedisse satisfações.
Toca o telemóvel novamente. Patrícia estava mesmo a seu lado.
Ele: SIM
Ela: Porque me falaste assim há pouco?
Ele: Porque a minha mulher está ao meu lado e já me está a chatear. Não está a gostar destes telefonemas.
Ela desliga o telemóvel.
Patrícia vira-se para ele e diz:
- De que cor tem ela o cabelo?
Ele:- Castanho, louro, sei lá.
Patrícia: Lembraste que te contei de manhã que tinha sonhado com ratas enormes. Lembraste de te dizer que, quando isso me acontecia, alguém me estava a trair? Essa rata castanha, um castanho quase louro, mordeu-me imensas vezes no meu sonho. Havia uma de cabelos pretos que estava aninhada ao canto da sala mas, essa, essa loura, atacava-me com raiva. Engraçado como, de repente, os ratos, que sempre achei nojentos, traidores, dos quais tinha um medo horrível se tornam, de um momento para o outro, meus amigos.
A vida é assim mesmo, nunca podemos dar nada como certo e como ela dizia:
- Se nada tinha tido dos pais, que eram pais, que poderia esperar de alguém? Nada.
Nada seria o que ela teria no futuro e nada era po que ela queria. Sonhar faz bem mas, pode matar. Pode matar quando se acredita num sonho que, só serve para nos trazer distraídos.
Patrícia partiu, mais uma vez, mas, desta vez, partiu para sempre. Se ninguém merecia nada que fazia ela ali? Nada e com nada ficaria mas, nada deixaria. Carregaria o peso da sua vida, apenas esse.
Brown Eyes
Comentários
Gostei desta tua história, como gosto de todas as que escreves.
Beijinhos :)
Já fui traída, me desiludi, fui abandonada, quase enlouqueci.
Mas dei a volta por cima.
E passei a gostar mais de mim e confiar em minha escolhas.
Gostar e confiar nos outros foi só um pulo.
Beijo
que tem muito a ver com este texto
e comoveu-me imenso ao lê-lo.
Feliz Páscoa. Estou distante do
meu país, para recuperar, mas
o vício da Net acaba por me direcionar para o computador.
Beijinhos.Boa Páscoa
Um beijo...
AL
Beijo
Estavas mesmo inspirada, há tantas Patrícias por aí.
Temos algumas coisas em comum, uma delas o nome. A traição é uma coisa que doí muito mas infelizmente existe muita, não existe só a traição do namorado, marido, mas também as dos amigos e família que tu falas muito bem na tua história, essa doí muito também.
Eu aos poucos tenho aprendido muito nos últimos meses, estou um pouco diferente, felizmente que tenho aprendido, mas é difícil de mudar.
Bjocas
Patty
Beijinhos
Abraço apertado*
Beijinhos
Beijinhos
Beijinho
Beijinhos
Quero dizer, a união não resultou porque a Patrícia veio cheia de traumas para o casamento e o marido, oportunista, sem qualificação, em vez de romper, arranjou a ligação e descaradamente tentou o ludíbrio.
A vida das pessoas, não estando pré-determinada, pode ser alterada, sem um acentuar contumaz de traumas.
Nesse particular, a Patrícia não se precaviu.
Bjs
Beijo Grande Mary B.
Beijinhos
Há certezas que não se sabe de onde vêm, mas existem. Ela tinha essa.
Beijinho e obrigada
Primeiro diz que iria viver só para ela, depois deixou-se cair na tentação. Mas sabia que não o amava, já sabia que alguma coisa ia acontecer, porque "não acreditava em nada".
Não terá sido essa disposição a ajudar ao fim da relação em que se envolveu?
Se ela achava que devia viver só para ela, devia ter feito mesmo isso.
Isto é o psicólogo em mim que diz: Patrícia estava mal resolvida consigo mesmo.
Acreditar depende do passado. Por mais que o queiramos esquecer é ele que nos dá ensinamentos para o futuro que nos ensina a proteger-nos. É assim que se acredita mas se dúvida. Acredita-se e duvida-se. A verdade é que nada é certo nesta vida, não é? É o passado que te leva a saber disto e a poder vir a orientar a tua vida com esta certeza.
Penso que não terá influenciado em nada, afinal ela amava-o mimava-o e, mesmo duvidando da sorte, não o fazia transparecer no seu dia a dia.
Devia ter vivido só para ela, exactamente, evitaria outra decepção.
Patrícia não estava mal resolvida, Patrícia quis dar-se uma oportunidade. Afinal todos devíamos ter direito ao amor, sem espinhos, a ser amados. Ela pensou que seria desta. Ele tinha um comportamento irrepreensível mas, não foi ainda desta.
Valeu a pena? Ele proporcionou-lhe, apesar de tudo, muitos anos de felicidade, felicidade que ela nunca tinha sentido.
seguiu, 2ª. tentativa, para dar
um beijinho e agradecer a visita
ao meu. Tudo de bom para si./Irene
Tantas vidas assim por aí, tantas!
Mas nem todas tem a coragem de partir, de começar de novo, porque afinal todos merecem ser felizes, mesmo carregando tanto sofrimento.
Gostei muito mesmo!
Parabéns!
Um beijinho
Beijinhos
Há sempre que começar, seja de que maneira for.
Beijinhos e obrigada
mas eu acho que tu, por mais que fales contra todas estas mágoas, continuarás a ser uma pessoa que dá, que se entrega. Por mais que uma pessoa saia magoada, não aprende. porque talvez ao confiar nas pessoas poderemos amar completamente, mesmo que no fim o mesmo de sempre aconteça. porque tu sabes, como eu, que o melhor do amor está em dar não receber. Senão não era amor. Nunca deixes de ser assim. Porque se não dermos esse passo, poderemos nunca descobrir realmente as pessoas que nos rodeiam.
Se bem que tenho perfeita noção de que se não tivermos reciprocidade nas nossas acções e sentimentos não é benéfico. Mas uma coisa é sermos mártires, outra coisa é fecharmos a nossa alma com medo de sairmos magoadas.
gostei muito do texto. e desculpa qualquer assunção que eu tenha feito de forma errada sobre ti. :)
A tua Patrícia parece um íman a sorver sofrimento emocional e doloroso (que se tem vindo a manifestar desde criança).
Não podemos virar as costas à felicidade e desistir de ser feliz, isso nunca!
Podemos é mudar também o nosso comportamento e procurar ser-mos felizes de outras formas. Cabe-nos a nós descobri-las.
Gosto sempre das tuas histórias, Brown Eyes!
beijinhos
Amor (amor de um homem) nunca fui traída na ascensão da palavra, sofri muitas desilusões. Eu sou uma mulher que não me satisfaço com homenzinhos, para mim alguém que não tenha personalidade, que não lute pelo que quer, desilude-me, sempre. Poder de decisão, objectividade é essencial. Iludiram-me e com o convívio vi que afinal aquela pessoa demonstrava ser o que não era, só para me cativar porque sabia o que eu achava essencial. Mas ninguém engana muito tempo. Os outros não são tão burros como pensam. Há sempre um gesto, por mais pequeno que seja, uma palavra que nos faz cair na realidade.
Família? Aí talvez. Tratando-se de família deixo as coisas no ar. A família para mim é tão importante que não consigo falar dela, mesmo que me tenham dilacerado até ao mais profundo de mim. Tudo que disser dela será sempre abstracto.
Ninguém faz para receber em troca. Tudo que fiz na vida foi desinteressadamente, mas todos queremos ser reconhecidos. Reconhecimento que não tive, o que foi injusto. O meu destino, acredito no destino, colocou-me num meio demasiado hostil para uma pessoa como eu, tão sentimental e com objectivos tão definidos.
Ana quando nascemos com uma determinada personalidade é difícil manipulá-la mas eu tento fazê-lo. Sei que se fosse eu, a 100%, já me tinham destruído há muito. Não dou uma segunda oportunidade, posso andar muito tempo a reflectir mas quando corto é definitivo. Não há hipóteses de retomar. Amo-me demasiado para isso e não acredito que as pessoas más se emendem. Sei o que dói uma desilusão, o que dói a realidade e antes que alguém construa uma realidade rosa que se torna negra eu já construí uma parede, daquelas tão altas que é impossível transpor. Ana tens razão quando dizes que se não dermos nunca chegaremos a conhecer as pessoas que nos rodeiam, prefiro isso a desiludir-me. Tento sempre manter a minha independência para não sofrer. O passado nunca se apaga e analisá-lo mantêm-nos seguras. É o que faço. A minha segurança sempre dependeu de mim, nunca pude contar com ninguém, nem nunca contei. Hoje tenho alguém com quem sei que posso contar. Achas que conto? É mais forte que eu este desejo de protecção. Tão forte que não consigo destruí-lo.
Como dizes tento avisar-te, é verdade. Não queria que ninguém passasse pelo que eu passei. Daí tentar que as pessoas possam ser felizes com o pouco contributo que eu possa dar, sem fazer com que a vida delas perca a beleza porque, apesar de tudo a vida é bela. Apesar de haver pessoas tão más. Ana sabes que admiro a sinceridade e acredita que te agradecerei sempre que o fores.
Beijinhos
Beijinhos
e obrigado pela parte que me toca. tb gosto muito de "conversar" contigo. :)
Poetic obrigado querida. tb te tenho em boa consideração. :)
Beijinhos
Bela para ti vai também um beijinho e um obrigado.
A traição... Já me trairam tanto e ainda nem 20 anos tenho - mas que importa a idade - a sim, importa quando me dizem "és tão nova, não sabes nada da vida", claro que sou, e claro que sei. Não sei tudo. Mas sei que agora já não me deixo pisar, e se me querem enterrar, agarrem-se bem porque vão comigo.
O teu blog é, sem dúvida, o primeiro da minha lista :)
Beijo grande para ti *
Beijinho grande para ti