Hoje parece que os atalhos deixaram de ter a definição de cruz. O velho ditado que nos dizia que, “quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos”, não tem mais razão de ser. São mesmo os caminhos que nos brindam com dificuldades.
Há uns anos largos, na altura que me locomovia a pé, lembrei-me de ir passar um Domingo à praia. Estava a uns dez quilómetros mas, mesmo sem transportes, pus-me a caminho. O calor insuportável que me cobria o corpo de gotículas de transpiração, estava a destruir-me o desejo. Do meu lado direito, após ter andado uns quilómetros, ou terão sido apenas uns metros, não sei, aparecia o azul do mar, logo ali, a dois passos de mim. Havia um atalho entre a natureza queimada que esboçava um pulo até ao azul aguado. Azul que me envolvia a imaginação. Bem, era um atalho, atalho trabalho, e, a Mary Brown, nunca escolhia a facilidade, hesitou. Hesitava, ao mesmo tempo que se ia embrenhando, a medo, naquele caminho mal marcado. Quando me apercebi o atalho tinha desaparecido, estava rodeada de arbustos, queimados, pintados de negro pelo fogo, que me rasgavam a pele e me encarvoavam. Impossível já voltar atrás. Ao fim de algumas horas, tisnada, com as pernas dilaceradas pelas naifadas daquela lenha mal ardida, cheguei à praia. O azul do mar, depois daquela tormentosa caminhada, tornou-se negro, da cor do equívoco, do engano e da desilusão. Aquela adolescente com aparência fresca, límpida e jovial, passou a aparentar uma mendicante, acabada de fugir do manicómio das redondezas. O carvão cobri-a, escondendo-lhe a cor da pele e da vestimenta.
A partir desse dia nunca, mas nunca mais, quis ouvir falar de atalhos. Os únicos que tenho utilizado são mesmo os que coloco no ambiente do trabalho e os do teclado que, esses sim, são profícuos.
Se já não tinha dúvidas, a sabedoria popular não precisa de canudos nem de certificados para a considerarmos competente, fiquei, a partir daquele dia, com a certeza de que os caminhos, embora mais longos, iludidamente, dão-nos algumas garantias e segurança. Mas, como comecei por dizer, estas certezas, ganhas com a experiência, ao longo de anos e anos, por várias gerações, passaram a ser incertas e dúbias.
Os atalhos nunca nos levarão ao verdadeiro caminho, esta é uma verdade incontestável. Assim sendo, podemos viver uma vida desconhecendo a verdade, se utilizarmos, por sistema, atalhos, fáceis, simples e acessíveis para atingirmos objectivos. Como desculpa, para a sua utilização, acusamos o tempo de ser caro, perder tempo custa dinheiro e os atalhos encurtam-no. O sucesso, a estabilidade financeira, conduzem-nos ao esquecimento da via.
Hoje há quem viva de atalhos: atalhos para a justiça, atalhos nas finanças, atalhos para a instrução, atalhos para a educação, atalhos para a saúde, atalhos para a razão, atalhos para a verdade, atalhos para o raciocínio, atalhos para a aquisição, atalhos para a transacção, atalhos para a economia, atalhos, atalhos e mais atalhos. Não vou exemplifica-los, todos os conhecemos. Fazem notícia nos telejornais.
A qualidade da nossa vida futura depende, sem dúvida, do que fizermos hoje. Hoje lançamos os alicerces que nos sustentarão amanhã. Se hoje optamos por atalhos entraremos num labirinto sem fim e, amanhã, ainda andaremos às voltas. A motivação deve ser no sentido de nos demonstrar que vale a pena seguir valores, que vale a pena ser íntegro, que vale a pena ser honesto, que vale a pena trabalhar. Mas não é nesse sentido que nos motivam. Por interesses políticos, distribuem-nos falsas facilidades (por exemplo os subsídios e as novas oportunidades) que, mais tarde, aferimos apenas terem servido para tapar o sol com a peneira.
Aqueles que ainda resistem aos atalhos sentem-se defraudados, roubados, desanimados, desiludidos e derrotados.
Ter um carácter longânime, de alguém que suporta as adversidades, que prossegue o seu caminho empenhando-se, apesar dos obstáculos, que continua a trabalhar arduamente, proporcionará algum benefício? Quando vemos o trapaceiro, o malandro, o mandrião, o indolente, o parasita, o inútil, a medrar impunemente, a ser aplaudido energicamente, a ser reconhecido publicamente?
Há uns anos largos, na altura que me locomovia a pé, lembrei-me de ir passar um Domingo à praia. Estava a uns dez quilómetros mas, mesmo sem transportes, pus-me a caminho. O calor insuportável que me cobria o corpo de gotículas de transpiração, estava a destruir-me o desejo. Do meu lado direito, após ter andado uns quilómetros, ou terão sido apenas uns metros, não sei, aparecia o azul do mar, logo ali, a dois passos de mim. Havia um atalho entre a natureza queimada que esboçava um pulo até ao azul aguado. Azul que me envolvia a imaginação. Bem, era um atalho, atalho trabalho, e, a Mary Brown, nunca escolhia a facilidade, hesitou. Hesitava, ao mesmo tempo que se ia embrenhando, a medo, naquele caminho mal marcado. Quando me apercebi o atalho tinha desaparecido, estava rodeada de arbustos, queimados, pintados de negro pelo fogo, que me rasgavam a pele e me encarvoavam. Impossível já voltar atrás. Ao fim de algumas horas, tisnada, com as pernas dilaceradas pelas naifadas daquela lenha mal ardida, cheguei à praia. O azul do mar, depois daquela tormentosa caminhada, tornou-se negro, da cor do equívoco, do engano e da desilusão. Aquela adolescente com aparência fresca, límpida e jovial, passou a aparentar uma mendicante, acabada de fugir do manicómio das redondezas. O carvão cobri-a, escondendo-lhe a cor da pele e da vestimenta.
A partir desse dia nunca, mas nunca mais, quis ouvir falar de atalhos. Os únicos que tenho utilizado são mesmo os que coloco no ambiente do trabalho e os do teclado que, esses sim, são profícuos.
Se já não tinha dúvidas, a sabedoria popular não precisa de canudos nem de certificados para a considerarmos competente, fiquei, a partir daquele dia, com a certeza de que os caminhos, embora mais longos, iludidamente, dão-nos algumas garantias e segurança. Mas, como comecei por dizer, estas certezas, ganhas com a experiência, ao longo de anos e anos, por várias gerações, passaram a ser incertas e dúbias.
Os atalhos nunca nos levarão ao verdadeiro caminho, esta é uma verdade incontestável. Assim sendo, podemos viver uma vida desconhecendo a verdade, se utilizarmos, por sistema, atalhos, fáceis, simples e acessíveis para atingirmos objectivos. Como desculpa, para a sua utilização, acusamos o tempo de ser caro, perder tempo custa dinheiro e os atalhos encurtam-no. O sucesso, a estabilidade financeira, conduzem-nos ao esquecimento da via.
Hoje há quem viva de atalhos: atalhos para a justiça, atalhos nas finanças, atalhos para a instrução, atalhos para a educação, atalhos para a saúde, atalhos para a razão, atalhos para a verdade, atalhos para o raciocínio, atalhos para a aquisição, atalhos para a transacção, atalhos para a economia, atalhos, atalhos e mais atalhos. Não vou exemplifica-los, todos os conhecemos. Fazem notícia nos telejornais.
A qualidade da nossa vida futura depende, sem dúvida, do que fizermos hoje. Hoje lançamos os alicerces que nos sustentarão amanhã. Se hoje optamos por atalhos entraremos num labirinto sem fim e, amanhã, ainda andaremos às voltas. A motivação deve ser no sentido de nos demonstrar que vale a pena seguir valores, que vale a pena ser íntegro, que vale a pena ser honesto, que vale a pena trabalhar. Mas não é nesse sentido que nos motivam. Por interesses políticos, distribuem-nos falsas facilidades (por exemplo os subsídios e as novas oportunidades) que, mais tarde, aferimos apenas terem servido para tapar o sol com a peneira.
Aqueles que ainda resistem aos atalhos sentem-se defraudados, roubados, desanimados, desiludidos e derrotados.
Ter um carácter longânime, de alguém que suporta as adversidades, que prossegue o seu caminho empenhando-se, apesar dos obstáculos, que continua a trabalhar arduamente, proporcionará algum benefício? Quando vemos o trapaceiro, o malandro, o mandrião, o indolente, o parasita, o inútil, a medrar impunemente, a ser aplaudido energicamente, a ser reconhecido publicamente?
Sociedades que espezinham os valores, aplaudem a imperfeição, a incorrecção e as irregularidades, terão um final feliz? As regras têm vindo a multiplicarem-se mas, também, se têm multiplicado as evasões. Qual poderá ser o objectivo do seu surgimento se, no fim de contas, não se é responsabilizado por não as cumprirmos e, até se é premiado? Se são aqueles que esperamos que nos dêem o exemplo, os primeiros a fugir às obrigações?
Onde estará afinal a virtude? Nos atalhos ou nos caminhos?
Onde estará afinal a virtude? Nos atalhos ou nos caminhos?
Brown Eyes
Comentários
Se a sabedoria popular nos diz que "não há duas sem três", mas ao mesmo tempo nos diz que "à terceira é de vez" não estará ela a meter-se em atalhos de explicação do real através de expressões facilitistas?
E depois, atalhos que nos metem em trabalhos só serão aqueles caminhos que nós não conhecemos e que pensamos que serão atalhos, mas que na realidade não são, porque atalhos conhecidos usam-se frequentemente sem dar nenhum trabalho. Eu, pelo menos, uso-os.
Agora, relativamente à pergunta que deixas em aberto (e que até poderá ser retórica), respondo que em caminhos longos ou atalhos se deve seguir sempre com dignidade, independentemente dos outros, ajudando quem vemos pelo caminho, fazendo-os sentir a eles, aos outros todos que vamos vendo pelo caminho, e a nós mesmos o melhor possível.
De um defensor de atalhos, menos os da moral.
Boa reflexão esta Mary B., tanto que fica por dizer...
Beijo Grande
Johnny há atalhos e atalhos e a maior parte dos atalhos a que me refiro não podem ser utilizados com dignidade, nunca. Mas, este tema é tão vasto que poderás tu estar a falar de atalhos que nem sequer me passam pela cabeça. Os atalhos que me fizeram escrever este post são mesmo aqueles atalhos que se ligam à moral. Um subsídio (mal distribuído), umas novas oportunidades, são atalhos morais se tiveres em conta o outro lado, aquele que trabalha e tem que contar os tostões porque no fim do mês vai ter que contribuir para os que vivem à custa dele, aquele que estudou anos, sem poder divertir-se para agora ver outros com apenas em meses conseguirem fazer o nono ano e entrarem na universidade. Os atalhos a que me refiro, basicamente, são os imorais. Nada que prejudique alguém pode ser considerado dentro da moralidade.
Obrigada e, adorei esta troca de ideias.
BJS
Viste o que me aconteceu quando escolhi aquele maldito atalho para ir à praia? Saí de lá como um Cristo. E para voltar a casa? Nem imaginas! É que eu parecia mesmo uma pedinte, toda negra. Lá apareceu um casal simpático, que não tinha grande amor ao carro, senão não me tinham dado boleia, eu estava… feita uma carvoeira. E aparentemente o atalho era magnifico. Fiei-me nas aparências depois… Aprendi a lição. Hoje devoro os D.R. não vá eu pisar o risco e em vez de carvoeira vire fogueira (rsss).
Querida Mel como dizes tanto que ficou por dizer mas, como diz o ditado, “por falar se ganha, por falar se perde” e, assim sendo, decidi falar neles muito por alto é que “polidez pouco custa e muito vale”.
Beijinhos e mais uma vez obriga pela lucidez que colocas nos teus comentários.
São. Queria dizer que são, na medida em que explicam todo o real. Para cada ditado que diz uma coisa, há um outro que diz precisamente o contrário. Era aí que eu queria chegar. Talvez um dia faça uma argumentação mais fundamentada, mas agora não me lembro de mais exemplo nenhum. Mas há muitos.
O “não há duas sem três” tende a explicar os erros. Não erramos apenas uma vez, levamos tempo a aprender, só à terceira é que aprendemos, daí o “à terceira ser de vez”. Mas como o conhecimento popular é subjectivo, eu tiro estas conclusões e tu poderás tirar outras.
Cabe-nos a nós distinguir, depois, que atalhos voltar a percorrer, cientes da nossa responsabilidade. Esse é o problema, é a assunção de responsabilidade, tão em voga em Portugal. Já dizia o José Mário Branco: «a culpa é de todos, a culpa não é de ninguém. Quer isto dizer: há culpa de todos em geral, mas de ninguém em particular.» Mas divago...
Quanto a provérbios que se contradizem:
«Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje.»
«O que não se faz no dia de Santa Luzia faz-se no outro dia.»
Boa tarde!
Como sempre, a verdade deve estar no meio das duas opiniões.
Claro que os ditados e provérbios contém muita sabedoria, até científica, mas como essa mesma sabedoria científica, também a sabedoria popular fica por vezes aquém do real.
Obrigado por mais um exemplo, Helel Ben Shahar!
Houve um professor reformado, Manuel Madeira Grilo, que lançou um Dicionário de Provérbios (3000). Fazia falta, não havia nenhum. Uma das obras que pretendo adquirir.
A virtude está em nós, em quem os percorre, ou a falta dela. E é essa virtude ou falta dela que nos faz, no momento exacto, escolher um ou outro. Concordo plenamente.
Obrigada pela tua perspicuidade. Beijinhos.
Quanto aos ditados que se contradizem obrigado. Nem eu nem o Johnny conseguíamos lembrarmo-nos. Bem eu, para ser sincera, nem sequer punha essa hipótese apesar de a admitir depois de ter sido posta.
«Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje.» Este utilizo-o muito, para me convencer a pôr a preguiça de lado.
«O que não se faz no dia de Santa Luzia faz-se no outro dia.» Este, sinceramente, não me lembrava dele.
Helel obrigada, uma excelente contribuição.
Tinhas razão quando dizias que os ditados se contradizem. Eu tento ser imparcial mas, pelos vistos, não sou tanto como julgo. Mas tenho a noção disso. Tenho a noção que o facto de concordar com algo me faz perder parte da verdade. Daí contar convosco, tão atentos e perspicazes. Imaginam o que me ensinam? Sou uma sortuda.
Para se debater com sinceridade, por vezes, ferir susceptibilidades é inevitável e quase sempre indispensável.
Por isso ficou assim.
Ficou assim e não ficou uma seca, Mary Brown.
Boa noite!
Onde estará afinal a virtude? Nos atalhos ou nos caminhos?
Sem dúvida, está nos caminhos.
Um exemplo muito simples, explica isto.
Quando é que sentimos realmente amor por algo? Quando esse algo nos é oferecido ou quando esse algo é adquirido com o fruto do nosso trabalho?
Obrigada por mais este teu comentário que vem de encontro ao que penso sobre o assunto.
BJS
Ao desconcerto do Mundo
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
LVC
Por isso a problemática não é propriamente nova.
uma beijoca...
beijos de quem te gosta
Imperdoável por ti, e por mim.
Adorei a descrição... imaginei-me eu mesma nessa situação. Quantas vezes isso já me aconteceu nos pinhais e matos aqui à volta. Há caminhos que desaparecem com os anos, e quando lá chegámos apenas vimos silvas e mato espinhoso.
A ultima vez aconteceu-me este Verão... acho que nunca mais vai acontecer. =)
E depois... eu preciso de ouvir palavras nesta linha. Parece que para onde quer que olhe, ultimamente, tudo me aponta para uma única direcção. Não a seguir será optar por um atalho que um dia me vai sair caríssimo. Porque nessa altura, estarei magoada, desolada, desencantada... e não haverá volta a dar.
Obrigada por estas palavras.
Abraço*
Beijinhos grandes