Avançar para o conteúdo principal

Mudam-se os tempos, mudam-se os diários


Fazia quinze aninhos quando recebi, oferta de um amigo da família, um diário. Nunca tinha pensado em comprar nenhum, não me fascinavam. Andava seduzida com a leitura, devorava tudo o que me aparecia. Como prenda de anos, minha, de vez em quando apetece-me oferendar-me algo, recebi, de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição. Este livro era, naquela altura, leitura proibida. A minha tia quando descobriu o que andava a ler teve uma conversa com a minha mãe.
- A miúda não pode ler este livro. Não é para a idade dela.
- Porquê? Deixa-a lá ler o que quiser. Respondeu a minha mãe.
- Tia explique-me porque não posso ler esse livro?
- Porque não. Não tens idade para te dar mais explicações.
Ok. Fiquei esclarecida e claro que continuei a ler o livro. Não consegui saber, nunca, o que tinha o livro que fosse proibido. A morte? O Amor?Falava apenas de um grande amor, entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, um grande amor nunca deveria ser censurado mas sim louvado, apesar de ser um amor entre filhos de famílias que se odiavam. Este romance faz parte da chamada segunda fase do romantismo, em que o amor pode levar até as últimas consequências, a morte.Após ter satisfeito este desejo, dos meus quinze anos, permanecia um diário em branco. Que lhe ia fazer? Tinha lido o diário de Anne Frank mas, não me tinha incentivado o suficiente para escrever um.Falar de mim nunca me cativou. Sempre pensei que há coisas bem mais importantes que fazer do que o relato do meu dia a dia. Que banalidade! Não havia acontecimentos extraordinários, eram todos triviais, repetidos por muitas adolescentes. Um bilhetinho? Antigamente os rapazes enviavam-nos bilhetinhos de amor que faziam deslizar pelas carteiras da sala de aulas até chegarem ao destino, não havia sms, como hoje, não era assunto que acha-se importante para tema. Temos, sempre, pensamentos que, por serem tão íntimos os queremos manter privados. Nunca confiei em ninguém o suficiente para lhe ler a minha alma e não iria, de forma alguma, confiar naquelas folhas brancas até porque, apesar do cadeado, podia facilmente ser violado.Segredos? Não tenho segredos, nunca tive, mas sempre gostei de preservar a minha intimidade. Intimidade essa que cotei com valor elevadíssimo ao longo da minha vida. Como observadora fui notando que quanto mais conheciam de nós, mais tinham para espezinhar quando quisessem. Nada sabendo, nada atiravam. As pessoas adoram rebaixar com os chamados segredos e tropeções. Nunca tentam vencer pela lógica, sempre pelos segredos e erros. Jamais tentaria abater alguém rebaixando-o ou humilhando-o, essa atitude não me consagraria vitoriosa, pelo contrário, sentir-me-ia baixa, vil, asquerosa e suja mas, infelizmente, sei que não posso medir os outros pela mesma fita métrica que utilizo para mim.Foram as noções de vida adquiridas, desde menininha, que me conduziram a criar uma independência. Um diário era algo que me podia encarcerar, que me podia enlaçar e não via nele qualquer benefício. Portanto, guardaria aquele bocado de papel, encapado de vermelho, em branco.Hoje, após muitos anos, surge-me a oportunidade de ter um diário. Um diário do século vinte e um, online, aberto ao mundo, com a capacidade de os leitores deixarem comentários de forma a interagir comigo e com os outros leitores, um blog. Era algo que me seduzia, algo novo, que me traria novos conhecimentos, nova visão do mundo, uma possibilidade de poder propagar as minhas ideias, sem as vulgarizar, de poder espalhar mensagens, de, quiçá, contribuir para reformar mentalidades. Pôr as pessoas a pensar sobre posturas diárias, enraizadas, que pouco ou nada beneficiam o ser humano, afinal convivemos com os outros não como irmãos, que somos, mas como inimigos. Temos atitudes que transmitem eternidade quando, na realidade, somos seres mortais. Travei imensas lutas a favor da justiça o que perturbou tantas vezes a minha paz e bem-estar, podia, agora, fazê-lo sem que fosse atingida. Nunca consegui observar, impávida e serena, um acto injusto, partia imediatamente para a defesa mesmo pondo em risco a minha segurança pessoal. Agora, rodeada pela comodidade do meu lar, podia dar o meu contributo para um mundo melhor, sem perder a minha intimidade. A minha vida não teria surgido em vão, podiam os meus exemplos, bons e maus, serem aproveitados para beneficiar alguém. Bons e maus porque, apesar de quando agimos pensarmos que estamos a fazer o melhor possível, mais tarde, sem pressões, verificamos que afinal havia outras opções e muito mais correctas. A vida está sempre assente num esboço, as suas linhas não podem ser gravadas porque, a qualquer momento, temos que as safar para as projectar novamente.
Mudam-se os tempos mudam-se as vontades, ou não? A vontade é a mesma, lutar por aquilo que se acredita. Modificou apenas a forma de o fazer. Um diário, hoje, pode ser utilizado como um serviço, como um préstimo, não apenas como objecto para nos acender a memória, como um instrumento de conhecimento, de alerta, estimulando o nosso sentido criativo, obrigando-nos a um aperfeiçoamento a uma correcção do nosso “Eu”, constante, a uma mudança, que nasce do contacto com outras individualidades, com visões divergentes que procuram, simultaneamente, a verdade.
A minha intimidade continua intocável, a minha privacidade intangível e eu continuo a ser apenas uma mulher.



Brown Eyes

Comentários

Ginger disse…
OMG!!
Do que tu te foste lembrar!! =D
Comecei o meu primeiro diário aos 12 anos... como sabia onde estava fui lá dar uma olhadela depois de ler o teu texto. :p
Li as primeiras 3 páginas, e se tivesse um buraco, enterrava-me. :s
DjiZas... eu era mesmo uma tonixa-pão-sem-sal!
E sabes que mais? Vou mete-lo na mala... vai comigo de férias! Ainda me vou rir um bocado... ou não. =|

Fizeste muito bem em ter começado este teu diário cibernáutico... ;) ... já aprendi muita coisa na blogosfera. Já ri muito, já me emocionei, já chorei...
É muito bom. Sou uma viciada...admito. :$


Kiss *
Brown Eyes disse…
Ginger o diário, apesar de ser mais uma coisa no saco de viagem, vai ser, decerto, muito mais útil que uma bijutaria. Quem sabe não nasce daí um livro? Sabes onde me lembrei do meu diário? Numa daquelas viagens, que demoram horas, que faço no fim-de-semana. Como, nessa altura, tempo livre não me falta, o movimento não é muito, lembro-me de mil e uma coisa e é, muitas vezes aí, que nascem as ideias para o blog. Algumas delas conforme nascem assim desaparecem mas essa, vá-se lá saber porquê, ficou. Dizes que estás viciada na blogosfera mas eu também. Há blogs que não consigo deixar de visitar. Aprendemos muito uns com os outros. Isto é uma escola. Aqui encontram-se muitas visões da vida, diferentes maneiras de actuar, diferentes interesses. O comportamento humano é mesmo muito diversificado. Nos comentários consegues aperceber-te do tipo de pessoa que o está a fazer. Não é? Como já disse conseguimos sentir carinho por pessoas que não conhecemos e sentimos a falta delas quando se ausentam. Um beijinho
Leo Mandoki, Jr. disse…
tbm gostei do que tu escreves...mas eu nao banalizo o sexo e as drogas...apenas faço um exercicio de desmistificação...geralmente o ser humano tem mto pudores para falar desses assuntos...e eu tento torna-los materia palpavel e sem preconceitos..
só isso
mas gostei bastante do teu comentario
um forte beijo
Prosa fluída, interessante...

Afinal,apenas mais uma página do diário...
Anónimo disse…
e hoje...os nossos diários são blogs..

bjinho
Karlytus disse…
apesar de ser rapaz sempre tive a mania de escrever em diários.. desde bem novo.. ainda hoje o faço.. pq há coisas q n podem perder-se.. pq há coisas demasiado pesadas para guardar cá dentro..

um beijinho e uma semaninha bem boa!
Isaura Pereira disse…
Olá !
E eu voltei :-) !!!!
Pois é lembraste-me de uma coisa e temos isso em comum ... na altura que era adolescente ofereceram-me uns 3 ou 4 diários ... nunca tive coragem para iniciar nenhum ...tal como tu li o diário de Anne Frank e nem assim me deu vontade para começar a escrever ... todos eles na 1ª pagina têm uma coisa - a data e por quem foram oferecidos ... nada mais :-)

O meu cantinho também não deixa de ser um diário ( shiuuuuuuuuuuu ... não digas a ninguém :-) ) mas de uma forma diferente todos os poemas têm um poucquinho da verdade que eu sinto naquele dia ;)

Vou voltar concerteza .... hei-de " devorar " cada post que aqui tens .. amei :-)

Jocas

Mensagens populares deste blogue

A droga da fama

Ao longo da minha vida fui tirando conclusões que vou comparando com os acontecimentos do dia a dia. Muito cedo descobri que ser famoso, ser conhecido, ou até mesmo ter a infelicidade de dar nas vistas, mesmo sem nada fazer para e por isso, era prejudicial, despertava inveja e esta, por sua vez, tecia as mais incríveis teias. Todos, algum dia, foram vítimas de um boato. Todos descobrimos a dificuldade em o desfazer, em detectar a sua origem mas, todos, sabemos qual o seu objectivo: ceifar alguém. Porque surge ? Alguém está com medo, medo de que alguém, que considera superior, se o visse igual ou inferior não se sentiria barricado, lhe possa, de alguma maneira, fazer sombra. Como a frontalidade é apanágio apenas de alguns e porque, a maior parte das vezes, tudo não passa de imaginação, não se podendo interpelar ninguém com base nela, não havendo indícios de nada apenas inveja parte-se, de imediato, para o boato. Assim, tendo como culpado ninguém, porque é sempre alguém que ouviu

Carnaval de Vermes

Vermes, quem são? Aqueles que jogam sujo, aqueles que não medem meios para chegarem a um fim, aqueles que prejudicam deliberadamente, aqueles a quem eu afogaria à nascença e sou contra à justiça feita pelas próprias mãos mas, afogava-os, com todo o prazer.  Não merecem viver,  muito menos relacionarem-se com gente. Vocês acham que sou condescendente só porque o verme é vizinho, conhecido, amigo ou familiar? Não. É verme e  como tal não lhe permito sequer que respire o mesmo ar que eu.  Se todos pensam assim? Não. Há quem pense que temos que aceitar certo tipo de vermes, que há vermes especiais,  os   do mesmo sangue, porque fica bem haver harmonia no lar ou até porque … sei lá porquê, não interessa.   Não sei? Não será porque têm medo de serem avaliados negativamente, pela sociedade, se houver um verme na família, se tomarem uma decisão radical para com esse verme? Se for filho têm medo que o seu papel como progenitores seja posto em causa, que isso demonstre que falharam, que  

Surpreendida com rosas

Um dia, há uns anos largos, anos cinzentos, daqueles em que tudo se encrespa, entra pelo meu gabinete uma florista, que eu conhecia de vista, com um ramo enorme de rosas vermelhas e uma caixa com um laçarote dourado. Ela: Mary Brown? São para si. Eu: Sim, mas,… deve, deve haver aí um engano. Não faço anos hoje, nem conheço ninguém capaz de me fazer tal surpresa. Ela: Não há não. Ligaram-me, deram-me o seu nome, local de trabalho, pediram-me que lhe trouxesse este ramos de flores, que lhe comprasse esta prenda e que não dissesse quem lhe fazia esta surpresa. Aliás, acrescentaram, ainda, que a Mary nem o conhece mas, ele conhece-a a si. Eu: O quê? Está a brincar comigo, não? Não, não posso aceitar. Fiquei tão surpreendida que nem sabia como agir, aliás, eu estava a gaguejar e, acreditem, não sou gaga. Ela: Como? Eu: Não posso aceitar. Não gosto muito de ser presenteada, prefiro presentear, muito menos por alguém que não conheço. Imagine!  Era só o que me faltava. Obrigada mas não